☯️ MDV #54 - Chorume
(tempo de leitura aprox. 4 min)
Era uma quinta-feira, sete e meia da noite e eu tinha acabado de dar seta pra virar na rua de casa.
Eu estava puto, mas eram os dois quarteirões finais até estacionar, dar um beijo na Anna, abraçar meus dois filhos, tomar um banho e jantar. Depois de encarar uma hora e meia do trânsito de São Paulo num trajeto que deveria durar vinte minutos, era só o que eu queria.
O dia tinha sido daqueles e, com uma reunião atrás da outra, minha lista de pendências cresceu na mesma proporção que os e-mails não lidos na caixa de entrada. Por causa disso, pela terceira semana seguida eu não sairia às 15h na sexta-feira como todo mundo - um dos benefícios mais legais que eu já vi oferecerem - e não havia nada que eu pudesse fazer. De novo.
Na volta pra casa, até as rotas alternativas estavam travadas. São Paulo é como um gremlin: se cair uma gota de água, vira o demônio na Terra. E, como em todo janeiro, a previsão era de muita, muita chuva. Pelo segundo dia consecutivo.
Dava pra sentir todo mundo dirigindo com mais pressa que de costume. Principalmente os motoboys, costurando entre os carros com suas buzinas estridentes.
Eu nunca quis tanto mudar minha realidade quanto naquele momento. A cada anda e para, eu pensava se a minha transferência pra Boston seria aprovada pra finalmente sair dali.
Mas eu já estava quase em casa.
Sabe quem mais já estava quase em casa? O caminhão de lixo na minha frente.
Eu morava numa rua estreita, de mão única em que os carros paravam dos dois lados. Não tinha como desviar.
No quarteirão anterior ao do meu prédio havia dois condomínios gigantes. De um lado, eram três torres de vinte e cinco andares cada. Do outro uma torre só, com mais de trinta andares. Tinha muito lixo pra ser recolhido.
A única vez que vi mais lixo na vida foi quando, depois de uma reunião no PROJAC, levaram a gente pra fazer um tour no set de filmagens de Avenida Brasil e visitamos o lixão da Lucinda. Lixo cenográfico, mas enfim.
Como era o primeiro carro da fila que se formava, eu conseguia ver de perto o trabalho dos lixeiros. Parecia até ensaiado e eles estavam fazendo de tudo pra terminar aquilo o mais rápido possível.
Comecei a prestar atenção em um deles especificamente. Aparentava ser menos experiente que os outros, mas alguma coisa no olhar dele me pegou. Essa profissão não deve ser fácil, mas aquele cara parecia ter uma determinação diferente. Ele queria sair dali muito mais do que os outros.
Depois de uns 5 minutos parados, os carros na avenida (que não sabiam o que estava acontecendo) começaram a buzinar. O barulho deve ter acordado São Pedro porque, nesse momento, começou a chover. Muito.
A umidade do verão somada à chuva fez o cheiro ficar insuportável, mesmo com os vidros fechados. Se você já parou atrás de um caminhão de lixo, sabe do que eu estou falando.
As buzinas não só continuaram. Elas aumentaram.
Sim, os caras estavam travando o trânsito. Mas era porque davam destino ao lixo que eu e você colocamos pra fora sem nem precisar pegar o elevador.
Aquilo foi me deixando mais puto.
Não sei se você já viu, mas caminhões de lixo têm um mecanismo que esmaga tudo que é colocado no compartimento traseiro pra caber mais. Essa operação aconteceu três vezes enquanto estávamos parados ali. Porque era muito lixo.
Na última, o cara que parecia ter menos experiência deixou um saco de lixo meio pra fora do caminhão. E conforme a máquina começou a comprimir o lixo, a parte que ficou pra fora começou a inflar - como acontece quando apertamos um dos lados de uma bexiga cheia. Só que, diferente das bexigas, sacos de lixo não esticam muito.
O que eu e aquele lixeiro que eu tentava acompanhar temíamos aconteceu: o saco estourou e um jato de chorume explodiu na cara dele.
Ver aquele lixeiro daquele jeito, encharcado e humilhado sob o som das buzinas mudou algo dentro de mim.
Eu havia passado o dia frustrado com minha lista interminável de tarefas.
A impossibilidade de sair cedo do trabalho no dia seguinte deixou tudo pior.
E o combo trânsito+chuva despertou o pior lado das pessoas. Inclusive o meu.
Mas naquele momento, minha irritação parecia trivial. Aquilo tudo importava?
O lixeiro, apesar de tudo que aconteceu, enxugou o rosto com a manga da camisa e continuou seu trabalho com a mesma determinação. Se bobear, com mais.
E isso me fez refletir em quantas vezes eu me encolhi depois que algo no trabalho não saiu como planejado.
A lição que levei comigo naquela noite foi clara: não importa quão pesados sejam os fardos que carregamos, sempre podemos escolher como reagir a eles.
A resiliência não está em evitar a chuva, mas em aprender a dançar sob ela, sem se esquecer do motivo pelo qual começamos a jornada.
Dica de Storytelling
Ao contar suas histórias, seja online ou em qualquer outro meio, lembre-se de que os momentos mais impactantes muitas vezes estão nas experiências mais comuns.
Procure encontrar a humanidade em cada situação. Aquilo que todo mundo entende e consegue imaginar e sentir.
Compartilhe não só os fatos, mas também o que há pra aprender ali. Sem louros, prêmios ou máscaras. Isso cria uma conexão emocional com a audiência e dá profundidade ao seu conteúdo.
E lembre-se que, independentemente da sua profissão ou dos desafios do dia a dia, há sempre algo a ser aprendido e valorizado em cada experiência.
Frase da semana
Fique bem!
Daniel
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